
Categoria: Brasileiros e Portugueses
O Tigre -William Blake, poema com tradução
O Tigre
Tigre, tigre, incendiante
Na floresta da noite,
Que mão ou olho encararia
Tua feroz simetria?
Em que céu ou abismo tarde
O fogo do teu olho arde?
Que asas ousariam soprá-lo?
Que mão ousaria tocá-lo?
Que força, obra ou mão
Atiçaria o teu coração?
Que punho mais incrível
Forjou tua postura temível?
Que martelo, que corrente,
Que fornalha fez a tua mente?
Que bigorna, que punho a cerrar
Ousou teus terrores aprisionar?
Quando as estrelas em cadente espanto
Irromperam o vasto céu em pranto,
Será que Ele sorriu ao ver-te?
Ele que fez o Cordeiro também fez-te?
Tigre, tigre, incendiante
Na floresta da noite,
Que mão ou olho enquadraria
Tua feroz simetria?
(tradução Patanga Cordeiro)
Tyger
Tiger, tiger, burning bright,
In the forest of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare seize the fire?
And what shoulder, and what art,
Could twist the sinews of thy heart?
When thy heart began to beat,
What dread hand forged thy dread feet?
What the hammer? What the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? What dread grasp
Dared its deadly terrors clasp?
When the stars threw down their spears
And watered heaven with their tears,
Did He smile his work to see?
Did He who made the lamb make thee?
Tiger, tiger, burning bright,
In the forest of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?
-William Blake
O Tygre
Tygre, Tygre, viva chama
Que as florestas de noite inflama,
Que olho ou mão imortal podia
Traçar-te a horrível simetria?
Em que abismo ou céu longe ardeu
O fogo dos olhos teus?
Com que asas atreveu ao vôo?
Que mão ousou pegar o fogo?
Que arte & braço pôde então
Torcer-te as fibras do coração?
Quando ele já estava batendo,
Que mão & que pés horrendos?
Que cadeia? que martelo,
Que fornalha teve o teu cérebro?
Que bigorna? que tenaz
Pegou-te os horrores mortais?
Quando os astros alancearam
O céu e em pranto o banharam,
Sorriu ele ao ver seu feito?
Fez-te quem fez o Cordeiro?
Tygre, Tygre, viva chama
Que as florestas da noite inflama,
Que olho ou mão imortal ousaria
Traçar-te a horrível simetria?
Tradução: José Paulo Paes
O Tygre
Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?
Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chamma?
Que mão colheu esta flamma?
Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que cor, que ação?
Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
o moldou? Que mão, que garra
seu terror mortal amarra?
Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?
Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?
Tradução: Augusto de Campos
O leão
Leão! Leão! Leão!
Rugindo como o trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação
Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda.
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto.
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro.
Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna.
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus que te fez ou não?
O salto do tigre é rápido
Como o raio; mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o Leão dá.
Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte.
Pois bem, se ele vê o Leão
Foge como um furacão.
Leão se esgueirando, à espera
Da passagem de outra fera…
Vem o tigre; como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranquilo
O leão fica olhando aquilo.
Quando se cansam, o leão
Mata um com cada mão.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação!
Vinícius de Moraes
(Inspirado em William Blake)
Poemas de Cecília Meireles
No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta.
Serenata
Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina.
Permita que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.
Epigrama n. 2
És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo, persiste.
Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.
Fio
No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão…
— Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?
-Cecília Meireles
Ninguém anda com Deus mais do que eu ando -Alphonsus de Guimaraens
Ninguém anda com Deus mais do que eu ando,
Ninguém segue os seus passos como sigo.
Não bendigo a ninguém, e nem maldigo:
Tudo é morto num peito miserando.
Vejo o sol, vejo a lua e todo o bando
Das estrelas no olímpico jazigo.
A misteriosa mão de Deus o trigo
Que ela plantou aos poucos vai ceifando.
E vão-se as horas em completa calma.
Um dia (já vem longe ou já vem perto?)
Tudo que sofro e que sofri se acalma.
Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far-se-á luz dentro em mim, pois a minh’alma
Será trigo de Deus no céu aberto…
-Alphonsus de Guimaraens
Melhores Poemas
Sê o que renuncia altamente -Cecília Meireles
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre a tua alma nas tuas mãos
E abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
-Cecília Meireles
Não tem mais lar o que mora em tudo. -Cecília Meireles
Não tem mais lar o que mora em tudo.
Não há mais dádivas
Para o que não tem mãos.
Não há mundos nem caminhos
Para o que é maior que os caminhos
E os mundos.
Não há mais nada além de ti,
Porque te dispersaste…
Circulas em todas as coisas
E todos te sentem
Sentem-te como a si mesmos
E não sabem falar de ti.
-Cecília Meireles
Perguntarão pela tua alma. -Cecília Meireles
Eles te virão oferecer o ouro da Terra. -Cecília Meireles
Eles te virão oferecer o ouro da Terra.
E tu dirás que não.
A beleza.
E tu dirás que não.
O amor.
E tu dirás que não, para sempre.
Eles te oferecerão o ouro d’além da Terra.
E tu dirás sempre o mesmo.
Porque tens o segredo de tudo.
E sabes que o único bem é o teu.
-Cecilia Meireles , Cânticos, 1982
Não fales as palavras dos homens. -Cecília Meireles
Não fales as palavras dos homens.
Palavras com vida humana.
Que nascem, que crescem, que morrem.
Faze a tua palavra perfeita.
Dize somente coisas eternas.
Vive todos os tempos
Pela tua voz.
Sê o que o ouvido nunca esquece.
Repete-te para sempre.
Em todos os corações.
Em todos os mundos.
-Cecília Meireles, Cânticos, Editora Moderna
Adormece o teu corpo com a música da vida. -Cecília Meireles
Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Queira ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?
-Cecília Meireles, em “Cânticos”
Acordei do áureo sonho em sobressalto -Alphonsus de Guimaraens
Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.
Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.
Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.
Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…
-Alphonsus de Guimaraens
Até a glória de ficar silencioso, sem pensar. -Cecília Meireles
Não digas onde acaba o dia-
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.
-Cecília Meireles
E só ficastes tu que és eterno. -Cecília Meireles
O vento do meu espírito soprou sobre a vida.
E tudo o que era efêmero se desfez.
e só ficastes tu que és eterno.
-Cecília Meireles
Te ponha em tudo, como Deus. -Cecília Meireles
Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar .
Não queiras ter .
Nasce bem alto.
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo,
Como Deus.
-Cecília Meireles
A suave castelã das horas mortas -Alphonsus de Guimaraens
A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à Luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatais caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago…
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece…
E eu nem sei de cor uma só prece!
Pobre Alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lírios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.
De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.
Os poentes sepulcrais do extremo desengano
Vão enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.
Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…
– Alphonsus de Guimaraens, Dona Mística
Era noite de lua na minh’alma -Alphonsus de Guimarães
Era noite de lua na minh’alma
Quando surgiste pela vez primeira:
Em cada estrela, pelo azul em calma,
Florescia uma flor de laranjeira.
A esperança entreabria a verde palma
Ante os meus olhos, tépida, fagueira,
Como um aroma que inebria e acalma.
Romaria de amor, doce romeira!
E era um jardim de lírios. Suavemente
Sorriu-me a tua boca enamorada,
Como as flores que são como tu és….
– “Em que pensas?” – disseste, a voz tremente.
– “Senhora, penso que serás fanada
Como este lírio que te atiro aos pés!”
-Alphonsus de Guimarães
Olhando o céu tão coberto de astros -Alphonsus de Guimarães
Olhando o céu tão coberto de astros
Eu vi que estava diante de um altar
E tive, como dentro dos claustros
Uma vontade de rezar
-Alphonsus de Guimarães (trecho)
PEDRAS E FLORES -Augusto Branco
As pessoas são muito reativas: costumam retribuir exatamente aquilo que recebem. Retribuem o bem com o bem, e o mal com o mal. Mas tu, para seres imensamente feliz, procederás diferente:
Retribua com flores a todas as pedras que te atirarem.
Haverá um momento em que as pedras de teus inimigos acabarão, e assim eles só poderão atirar em você as próprias flores que receberam de ti.
-Augusto Branco
Quer pouco: terás tudo -Fernando Pessoa
Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.
-Fernando Pessoa
Jardim Interior -Mario Quintana
Todos os jardins deviam ser fechados,
Com altos muros de um cinza muito pálido,
Onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim
Não é mesmo alguma ausência
nem o abandono…
O que mata um jardim
É esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.
-Mario Quintana
Memória -Carlos Drummond de Andrade
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
-Carlos Drummond de Andrade
“Poemas”. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959.
Retrato -Cecília Meireles
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
-Cecília Meireles
Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
O mistério imortal das olheiras de opala… -Alphonsus de Guimaraens
O mistério imortal das olheiras de opala,
Onde vagueiam a dor dos seus olhos proibidos,
Manda que venham terra e céu para adorá-la. . .
Morre no seu olhar a vida dos sentidos.
Mesmo calada, quem a vê julga escutá-la,
Pois canta o seu olhar pelos nossos ouvidos.
De que estrela lhe desce a voz? Quando se cala,
Que rumor de orações nos olhos doloridos!
Não existe cá embaixo uma expressão humana
Capaz de definir-lhe o grande olhar tristonho;
E quem a vê, ou sonha uma estátua romana,
Marmoreamente branca, imaculada e fria,
Ou tem por entre o nimbo estrelado do sonho
A áurea Revelação de outra Virgem Maria.
-Alphonsus de Guimaraens
Melhores Poemas, Global Editora, 1985
Foi assim que eu a vi. -Alphonsus de Guimaraens
Foi assim que eu a vi. Desse momento
a lembrança tranqüila vem-me do alto
– sonho de rosas num país nevoento,
de que afinal acordo em sobressalto.
Fugiu-me essa visão: de novo tento
firmar os passos para um novo assalto.
Mas que farás, pobre homem sem alento,
tu, cego da alma e de coragem falto!
Que farás, coração que te magoas,
na tua timidez contemplativa,
só, tão longe das almas que são boas!
Que farás, alma, tu que louca e pasma,
seguindo embora o rastro de uma viva,
beijas os passos longos de um fantasma!
-Alphonsus de Guimaraens
Melhores Poemas, Global Editora, 1985
Celeste… É assim, divina, que te chamas. -Alphonsus de Guimaraens
Pulchra Ut Luna
II
Celeste… É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste…
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?
Celeste… E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.
-Alphonsus de Guimaraens,
da obra Melhores Poemas, Global Editora, 1985
Braços abertos, uma cruz -Alphonsus de Guimaraens
Braços abertos, uma cruz… Basta isto,
Meu Deus, na cova abandonada e estreita
Onde repouse quem te for benquisto,
Corpo duma alma que te seja afeita.
É o Justo. As chagas celestiais de Cristo
Beijam-lhe mãos e pés: purpúreo deita
O pobre lado traspassado o misto
De água e de sangue. É o Justo. Eis a alma eleita.
A coroa de espinhos irrisória
Magoa-lhe a cabeça, e pelas costas
Cai-lhe o manto dos reis em plena glória…
Glória de escárnio o manto extraordinário:
Mas quem me dera um dia, de mãos postas,
Nele envolver-me como num sudário!
-Alphonsus de Guimaraens
da obra Melhores Poemas, Global Editora, 1985
E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? -Saramago
E se as histórias para crianças passassem
a ser de leitura obrigatória para os adultos?
seriam eles capazes de aprender realmente
o que a tanto tempo têm andado a ensinar.
-José Saramago
A alegria não chega apenas no encontro do achado -Paulo Freire
A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.
-Paulo Freire
Pedagogia de Autonomia
Canção -Cecília Meireles
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
-Cecília Meireles
Antologia Poética
Mamãe vestida de rendas -Murilo Mendes
Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.
-Murilo Mendes
Confidência do Itabirano -C. Drummond
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
-ANDRADE, C. D. Poesia completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
Uma experiência de Clarice Lispector
Trecho do livro Água Viva
Frases de Clarice Lispector
Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida.
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra.
Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve.
Escrevo-te porque não me entendo.
Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
Depois de um certo tempo, cada um é responsável pela cara que tem.
O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser.
Sim, o que te escrevo não é de ninguém. E essa liberdade de ninguém é muito perigosa. É como o infinito que tem cor de ar.
A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas – porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste.
Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor ir, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it.
Frases de Clarice Lispector sobre o silêncio e a autodescoberta
Que música belíssima ouço no profundo de mim. É feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. É música de câmara. Música de câmara é sem melodia. É modo de expressar o silêncio.
Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me deflagra.
Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que o pensamento, é a “coisa”. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta.
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem.Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem.
Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
Sou uma iniciada sem seita.
-Clarice Lispector
Quando eu flor e tu flores -Dimas Lima
quando eu flor
e tu flores
nós flores seremos
e o mundo só florescerá
quando tu, amor
a mais bela flor
encontrar um beija-flor
que vai tirar o melhor de você
e dizer: quero te ver
quando menos esperar
esse vai aparecer
e transparecer…
-Dimas Lima
Nove poemas de Clarice Lispector
Viver plenamente
Eu disse a uma amiga:
— A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
— Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim.
A síntese perfeita
“Sou tão misteriosa que não me entendo.”
A certeza do divino
“Através de meus graves erros — que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles — é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.”
*
Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor.
*
Resolvi guardar meu amor para mim, não por questão de egoísmo, mas de cuidado. Não quero que ninguém o toque, ou o machuque, só isso.
*
Deus lhe deu inúmeros pequenos dons que ele não usou nem desenvolveu por receio de ser um homem completo e sem pudor.
*
Já chorei até pegar no sono, mas já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
*
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
*
Pode-se aprender tudo, inclusive a amar! E o mais estranho, Lóri, pode-se aprender a ter alegria!
-Clarice Lispector, diversas fontes
Três poemas de Cora Coralina
Tempo virá.
Uma vacina preventiva de erros e violência se fará.
As prisões se transformarão em escolas e oficinas.
E os homens, imunizados contra o crime,
cidadãos de um novo mundo,
contarão às crianças do futuro, estórias absurdas de prisões, celas, altos muros, de um tempo superado.
-Cora Coralina
ASSIM EU VEJO A VIDA
A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
-Cora Coralina
Muitos se ufanam:
“Não devo nada a ninguém.”
Engano: devemos muito a todos.
-Cora Coralina
Oito poemas de Florbela Espanca
ANGÚSTIA
Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar! … e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós …
Querer apagar no céu – ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, com o vento! …
E não se apaga, não … nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga …
Vem sempre perguntando: “O que te resta? …”
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
-Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”
CONTO DE FADAS
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o unguento
Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento…
Trago no nome as letras de uma flor…
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento…
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d’oiro, a onda que palpita.
Dou-te comigo o mundo que Deus fez!
– Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: “Era uma vez…”
-Florbela Espanca, em “Charneca em Flor”
DE JOELHOS
“Bendita seja a Mãe que te gerou.”
Bendito o leite que te fez crescer
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer …
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver …
Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!
-Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”
EU
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada … a dolorida …
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…
Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
-Florbela Espanca
TÉDIO
Passo pálida e triste. Oiço dizer:
“Que branca que ela é! Parece morta!”
e eu que vou sonhando, vaga, absorta,
não tenho um gesto, ou um olhar sequer …
Que diga o mundo e a gente o que quiser!
– O que é que isso me faz? O que me importa? …
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!
O que é que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente …
O mesmo lago plácido, dormente …
E os dias, sempre os mesmos, a correr …
-Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”
Perdi os Meus Fantásticos Castelos
Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma…
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!
Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma…
– Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!
Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias…
Sobem-me aos lábios súplicas estranhas…
Sobre o meu coração pesam montanhas…
Olho assombrada as minhas mãos vazias…
-Florbela Espanca, in “A Mensageira das Violetas”
Os Versos que Te Fiz
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolências de veludos caros,
São como sedas brancas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda…
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
-Florbela Espanca, in “Livro de Sóror Saudade”
Vaidade
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo …
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho … E não sou nada! …
-Florbela Espanca, in “Livro de Mágoas”
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós. -Clarice Lispector
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
-Clarice Lispector
O que importa afinal, viver ou saber que se está vivendo? -Clarice Lispector
O que importa afinal, viver ou saber que se está vivendo?
-Clarice Lispector
Eu medito sem palavras e sobre o nada. -Clarice Lispector
Eu medito sem palavras e sobre o nada.
-Clarice Lispector
O Pavão – crônica de Rubem Braga
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas dágua em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
-Rubem Braga, Crônica
Pássaro livre
Gaiola aberta.
Aberta a janela.
O pássaro desperta.
A vida é bela.
A vida é bela.
A vida é boa.
Voa, pássaro, voa.
-Sidônio Muralha
O leão – Vinícius de Moraes
O leão
Leão! Leão! Leão!
Rugindo como o trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação
Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda.
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto.
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro.
Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna.
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus que te fez ou não?
O salto do tigre é rápido
Como o raio; mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o Leão dá.
Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte.
Pois bem, se ele vê o Leão
Foge como um furacão.
Leão se esgueirando, à espera
Da passagem de outra fera…
Vem o tigre; como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranquilo
O leão fica olhando aquilo.
Quando se cansam, o leão
Mata um com cada mão.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação!
Quem me compra um jardim com flores?
Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera, uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
Este é o meu leilão.
Leilão de jardim.
-Cecília Meireles
Quadras de Fernando Pessoa
Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
É ter a cara serena.
*
Não digas mal de ninguém,
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.
-Fernando Pessoa