Memória -Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

-Carlos Drummond de Andrade
“Poemas”. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959.

Confidência do Itabirano -C. Drummond

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

-ANDRADE, C. D. Poesia completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

Os dias lindos – Carlos Drummond de Andrade

Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos.
E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor. A temperatura ficou amena, conduzindo à revisão do vestuário. Protege-se um tudo-nada o corpo, que vivia por aí exposto e suado, bufando contra os excessos da natureza. Sob esse mínimo de agasalho, a pele contente recebe a visita dos dias lindos.
A cor. Redescobrimos o azul correto, o azul azul, que há meses se despedaçara em manchas cinzentas no branco sujo do espaço. O azul reconstituiu-se na luz filtrada, decantada, que lava também os matizes empobrecidos das coisas naturais e das fabricadas. A cor é mais cor, na pureza deste ar que ousa desafiar os vapores, emanações e fuligens da era tecnológica. E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia.
O ar. Ficou mais leve, ou nós é que nos tornamos menos pesadões, movendo-nos com desembaraço, quando, antes, andar era uma tarefa dividida entre o sacrifício e o tédio? Tornou-se quase voluptuoso andar pelo gosto de andar, captando os sinais inconfundíveis da presença dos dias lindos.
Foi certamente num dia como estes que Cecília Meireles escreveu: ‘A doçura maior da vida flui na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo círculo dos dias sossegados’. Porque a primeira consequência da combinação de azul e leveza de ar é o sossego que baixa sobre nosso estoque de problemas. Eles não deixam de existir. Mas fica mais fácil carregá-los.
Então, é preciso fazer justiça aos dias lindos, oferecer-lhes nossa gratidão. Será egoísmo curti-los na moita, deixando de comentar com os amigos e até com desconhecidos que por acaso ainda não perceberam o raro presente de abril: ‘Repare como o dia está lindo”. Não precisa botar ênfase na exclamação. Pode até fazê-la baixinho, como quem transmite boato e não deseja comprometer-se com a segurança nacional. Mesmo assim, a afirmação pega. Não só o dia fica mais lindo, como também o ouvinte, quem sabe se distraído ou de lenta percepção sensorial, ganha a chance de descobri-lo igualmente. Descobre e passa adiante a informação.
A reação em cadeia pode contribuir para amenizar um tanto o que eu chamo de desconcerto do mundo. De onde se conclui: deixar de lado, mesmo por instantes, o peso dos acontecimentos mundiais trágicos, esmagadores, para degustar a finura da atmosfera e a limpidez das imagens recortadas na luz, é um passo dado para reduzir o desconcerto, na medida em que a boa disposição de espírito de cada um pode servir de prefácio, ou rascunho de prefácio, à pacificação, ou relativa pacificação, dos povos e seus dominadores. Em vez de alienação, portanto, o prazer dos dias lindos é terapia indireta.
Pode ser que o desconhecido lhe responda com um palavrão, desses em moda na sociedade mais fina. Não faz mal. Não se ofenda. Ele descarregou sobre a sua observação amical o azedume que ameaçava corroê-lo no íntimo. Livre desse fel, talvez se habilite a olhar também para o céu e a descobrir mesmo certa beleza esvoaçante no urubu. De qualquer modo foi avisado. Já sabe o que estava perdendo: a consciência de que certos dias de abril e maio são mais lindos do que os outros dias em geral, e nos integram num conjunto harmonioso, em que somos ao mesmo tempo ar, luz, suavidade e gente.

-Carlos Drummond de Andrade, texto publicado no Jornal do Brasil, 1970.

Receita de Ano Novo – mensagem de Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)

para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).

Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

– Carlos Drummond de Andrade